Cidade das Luzes, cidade do amor… para mim Paris é a cidade onde eu tomei consciência de quem eu sou. Consciência do meu corpo, da minha condição humana e sobretudo, consciência da loucura que eu tinha em mim, desse profundo mal-estar que fazia que as vezes eu tinha vontade de nunca mais levantar da cama. Graças a essa experiência em Paris, hoje eu mal posso esperar para começar o dia.

Quando eu larguei tudo para virar escritora, Paris fez que ia me acolher mas caiu fora na última hora. Eu me joguei nos braços da cidade e ela se esquivou bem em tempo de me deixar me espatifar inteira no seu chão mijado. Mas eu não reclamo. Junto com a paralisia que eu tive no braço, essa foi uma das maiores experiências da minha vida. Tão grande que eu escrevi um livro acerca disso. E eu estou colocando aqui um trechinho para você degustar.

Prólogo

“Você está ficando louca, Kundalini? — pensei, ao deixar o Champs de Mars, com a cabeça baixa, andando muito rápido. Poderia jurar que a Torre Eiffel estava se inclinando inteira.
É melhor continuar andando, senão você vai se atrasar para o seu primeiro dia como Diretora Executiva no hotel.
Atravessei a ponte de Iéna e avistei a Praça do Trocadéro. Comecei a subir as escadas sem olhar para trás, ouvindo o barulho do concreto se quebrando.
Com a Torre Eiffel nas minhas costas, eu andava contra o fluxo de turistas que se apressavam para voltar aos seus hotéis, preparar suas malas e entrar no primeiro avião que os levaria para casa. Eles não pareciam ter notado que a Torre Eiffel estava se curvando sobre o rio Sena.
Uma onda de poluição foi anunciada naquela manhã. A maior de todas e que, segundo os meteorologistas, duraria algumas semanas para passar. Mais do que nunca, o ar de Paris estava cinza, e por vezes era difícil enxergar alguns metros à frente. Partículas pairavam no ar, visíveis. O ar da capital estava cheio de ciscos que se agitavam como uma televisão fora de sintonia.
O caos estava imenso, mas não para mim. Eu estava feliz pela promoção que tinha ganhado. Cinco anos de trabalho árduo enfim eram recompensados. Decretei, naquela manhã, que a ocasião até merecia roupa nova. Eu merecia aquele conjunto Chanel, e é por isso que eu andava pela vizinhança da Torre Eiffel até vê-la inclinar-se, com gente e tudo, a antena na sua ponta quase a tocar as águas do Rio Sena e o pessoal lá em cima, sem notar.
O quê?
Continuei andando.
Cheguei até Praça do Trocadéro ainda com medo de olhar para trás e virei à direita na rotatória.
Avenue Kléber.
Já o podia ver o hotel onde trabalhava. A silhueta do seu esqueleto brilhando, luxuoso, de cristal. Recortado contra o céu acinzentado da capital. Eu percebi algo e estreitei os olhos.
O Arco do Triunfo ao final da avenida. O seu arco côncavo se curvando para dentro. Hein?
Bati no meu rosto. Arregalei os olhos.
No dia seguinte, eu marcaria uma visita no médico para checar se não estava sofrendo de alucinações, talvez pela poluição.
Eu sentia aquele ar entrar nos meus pulmões quando subi as escadas do hotel até a diretoria, onde já me aguardavam com as primeiras instruções para o meu cargo.
Cumprimentei os dois porteiros do hotel e alguns bagagistas que estavam ali parados. Eles acenaram de longe, sem sorrir. Eu continuei andando.
— Kundalini — a voz do dono do hotel soou em meus ouvidos. Ele caminhava até mim, o rosto inexpressivo, as mãos balançando sem utilidade ao lado do corpo.
— Bom dia, senhor. — cumprimentei sorrindo e ele, enfim, deu uma razão de ser aos seus braços, apertando a minha mão e indicando a sua sala, à direita.
— Quer um café? — Ele mostrou a cadeira e caminhou até a máquina de espresso. Um silêncio se instalou. — Há quanto tempo está conosco?
— Há cinco anos, senhor. — respondi sem refletir. Eu o observei apanhar a cápsula de café longo e colocar na máquina. — Tempo suficiente para que o senhor já saiba que café eu bebo, eu disse
Ele sorriu sem vontade ao acionar a máquina e preparar o adoçante, antes de caminhar até mim segurando a xicarazinha.
— Eu não sei como começar, minha cara. Sei que prometemos uma promoção, você já assinou seu contrato conosco mas… em vista das circunstâncias… o hotel terá que fechar as portas.
Eu estava tomando o primeiro gole quando ele disse essas palavras. Tossi um pouco, pisquei várias vezes. Lembrei da Torre Eiffel se curvando.
— Como assim? — depositei a xícara e o encarei, inclinando o corpo para frente, descruzando as pernas para um lado e cruzando-as para o outro.
Sem perder tempo, ele estendeu-me um contrato.
— Devido a essa… hum… mudança de circunstâncias, o setor hoteleiro terá que fechar. A cidade está poluída demais. É necessário fazer algo e o nosso, hum, governo, nos impõe essas medidas para baixar o nível de poluição.
— O que eu farei?
— O seguro-desemprego cuida por um tempo. Você não ficará na mão…
— Mas, como assim? Eu trabalho aqui há cinco anos.
— E eu há mais de vinte. É assim a vida.
Ele estendeu-me uma caneta.
— Tome isso como férias pagas. Um tempo para você se reposicionar, meditar, essa baboseira toda!
Eu apanhei a caneta que ele me ofereceu. Foi como se o tempo tivesse parado. Apenas a sua boca se mexia em câmera lenta, mas eu não ouvia o que ele dizia.
Olhei para a janela. O Sol estava amarelo, porém os seus raios não conseguiam penetrar a densa manta de poluição. Ao longe, eu vi o Arco do Triunfo inteiramente curvado. Um triunfo ao contrário? Pisquei várias vezes e agitei a cabeça para voltar à realidade. O dono do hotel voltou a falar numa velocidade normal.
— Nós vamos lhe pagar uma indenização, é claro. E quando o hotel reabrir — o que eu espero que aconteça logo — você recuperará seu emprego. Tem a minha palavra.
Eu desviei o olhar dele.
— O senhor viu o Arco do Triunfo?
Ele arregalou os olhos, surpreso. Suas sobrancelhas ergueram-se.
— Perdão?
Eu indiquei a janela que dava para o monumento. Ele seguiu-me com o olhar.
— O que tem?
Voltei minha minha cabeça para encará-lo.
— Nada chama a sua atenção? — com a voz aguda, eu apontava para o monumento curvado.
Ele olhou-me de cima a baixo e ergueu as sobrancelhas, provavelmente avaliando o estado da minha lucidez. Vi os seus dedos escorregarem por baixo da mesa onde eu sabia que tinha um botão para chamar a segurança do hotel.
— O Arco do Triunfo está como sempre, mas eu me surpreendo que ninguém tenha notado que a Chama do Soldado Desconhecido, bem embaixo tenha se apagado.
Meus olhos se dirigiram no mesmo instante para o fogo sob o Arco. Aceso desde as Grandes Guerras, homenageando os soldados que perderam suas vidas durante os conflitos. Queimava como sempre. Que brincadeira era aquela?
Fitei-o novamente, mas não disse nada.
— Por favor, assine aqui!
Lentamente, sem desviar o olhar dele e com muitos pensamentos na cabeça, eu apanhei a folha e assinei a minha demissão. Os seus dedos se relaxaram, como se ele tivesse largado o botão de segurança debaixo da mesa. Agradeceu apertando os lábios uns contra os outros — pela primeira vez o seu olhar expressando algo. Eu não consegui decifrar o que era.
— Eu acompanho você — disse ele, indicando-me a saída, mas eu ergui a palma da mão dizendo-lhe que não era necessário.
Lancei-me pela avenida, em direção ao Arco do Triunfo. Eu tinha que ver o que estava acontecendo. Pela primeira vez, era como se algo transportasse os meus pés, acelerando meus passos, não sei. Cheguei muito rápido até a Place de l’Etoile, onde ficava o símbolo de vitória do país. Não entendia os turistas tirando fotos e agindo como se nada estivesse errado. Entretanto, o Arco do Triunfo tinha se curvado de alguma maneira, e ninguém além de mim parecia notar. Eu fiquei sob o arco e contemplei a Chama do Soldado Desconhecido — o seu fogo ardendo como sempre. Lembrei-me do dono do hotel. Ele disse que ela estava apagada.
O que estava acontecendo?
Dirigi-me ao primeiro turista que vi.
— O que você está vendo? — apontei para o local sem me importar com o pulo que ele deu ao sentir o meu toque no seu braço.
— O Arco do Triunfo — respondeu o rapaz, balançando os ombros como se eu lhe perguntasse a coisa mais óbvia do mundo.
— Não está vendo nada demais? — eu apontei para o Arco.
Ele olhou de novo.
— Não, senhora!
Eu agitei a cabeça e pensei afastar-me dele, quando o homem segurou meus braços.
— Nada de errado com o Arco, já com o Obelisco da Praça da Concórdia… — apontou para o final da Champs Elysées e o meu olhar seguiu sua mão até o monumento torcido como a cauda de uma serpente. — Esse daí é uma pena. Quem fez isso deveria ser preso. Onde já se viu, estragar uma relíquia tão antiga?
Nesse momento, alguém ouviu o que dizia o homem.
— Não há nada de errado com o Obelisco, cego. Mas você ainda não viu o que aconteceu com a Igreja de Notre Dame…
O meu olhar dirigiu-se inevitavelmente até o local sobre a Île de la Cité, o Barco de Paris, onde repousava o santuário gótico mais conhecido da cidade.
— O que há de errado? — perguntei a ele, e uma mulher apontou como se mostrasse a coisa mais óbvia do mundo.
Eu via as torres da catedral, mas havia algo diferente. Elas se agitavam como os ciscos de poluição no ar de Paris. Tinham uma consistência de fumaça, como se não estivessem lá de fato, apenas sob forma de fantasmas.
Sentindo algo muito errado, eu afastei-me do grupo de pessoas que ficava comparando bizarrice atrás de bizarrice e discutindo, e fui sentar-me num banco de rua. Aos meus pés, o chão tremeu.
Olhei para baixo.
— Provavelmente é o metrô passando. — sussurrou uma moça magrela de rabo-de-cavalo que passava. Mas quando eu girei a cabeça não vi ninguém.
Encarei o chão de Paris, por onde eu sabia que passavam muitos trens. Talvez aquela tremedeira fosse mesmo provocada pelos vagões que passavam muito rápidos.
Ergui os olhos e, neste exato momento, uma fenda se abriu na poluição, e os raios do Sol penetraram a manta acinzentada até o meu corpo, deixando à mostra pela primeira vez desde que me entendo por gente, uma fina película de plasma límpida, agitando-se como bactérias na lâmina de um microscópio. Era como um véu transparente, um tecido que parecia vivo, pela maneira como se agitava. Nele, estavam incrustados pequenos círculos que giravam descoordenados, aumentando e diminuindo, em todas as direções, de todos os tamanhos.
Estendi as mãos para tocar o que via. E fosse pelo raio de Sol batendo em mim ou por curiosidade, ergui-me do banco para tocar a película. Nesse momento, a fenda se fechou, jogando mais poluição para dentro do mundo, fazendo tremer o meu corpo. Eu aterrissei no chão da calçada mijada de Paris. Os meus olhos começaram a se fechar, vendo apenas ciscos e aquele véu que eu, até então, achava que era o céu.

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