Cidade das Mandalas

“Acordei no escuro. 

Não tinha recordação alguma de onde estava, tampouco de como me encontrava ali. 

Ao abrir os olhos o frio penetrou-me o corpo, os meus braços estavam doloridos. 

Balancei-os. 

Um tilintar soou bem acima da minha cabeça. Eram algemas que prendiam os meus pulsos.

As juntas começaram a arder. 

Um formigamento intenso espalhou-se, como grãos de areia de uma ampulheta que a gente chacoalha, pelo corpo todo.

O que aconteceu comigo?

Percorri as linhas do lugar. 

Difíceis de discernir. 

— Que lugar é esse? 

O meu olhar ergueu-se, pouco a pouco, os meus olhos foram se adaptando à escuridão e eu contemplei pela primeira vez onde estava. 

Reconheci o quarto de Nicolas, mas estava diferente. Sujo, embolorado, escuro. 

Os cantos mofados aumentavam a atmosfera sombria do lugar. 

À minha esquerda, uma abertura circular do que me parecia um velho cano que dissipava um odor fétido.

Senti chegar o vômito.

Fechei os olhos. 

Em algum lugar vago da minha lembrança estava a figura de Mercier, pouco antes que eu adormecera, eu estava em seu carro. Nicolas precisava de mim. Pensei em Michel. O que acontecera com ele?

Balancei com força e com raiva os braços para me liberar das algemas.

Estirei o máximo que podia o corpo. 

Os braços escorregaram pelo buraco das algemas. 

Puxei, puxei, puxei e uma dor aguda invadiu o meu corpo, indo dos tendões às axilas e depois até os pés. 

Libertei-me. 

Esgueirei-me pela porta de carvalho do quarto de Nicolas. Tinha se transformado numa versão antiga, quase anciã, com uma abertura engradada, como as antigas portas medievais. 

O coração disparou. 

Uma dor aguda no peito, picando, picando, picando. 

Coloquei a mão sobre o local dolorido. Apoiei-me contra a parede.

“O que está acontecendo?” 

Olhei para o alto. 

O teto do lugar pareceu comprimir-se sobre a minha cabeça. 

Encolhi-me. 

O que era aquilo? 

Abri os olhos. 

O teto estava intacto. 

Respirei de volta. 

Atravessei a porta e me vi sozinha num corredor sombrio, iluminado apenas parcialmente pela chama de algumas tochas que pendiam nas paredes. 

Tudo estava diferente. Aquela não era a lembrança que eu tinha da casa de Nicolas. 

À sua imagem, um rapaz apareceu em minha frente. 

Segurava uma tocha e uma tala. 

Veio direto para cima de mim, flutuando. 

Fechei os olhos. 

Protegi-me com as mãos. 

Sacudi a cabeça com violência. 

Reabri. 

Tudo estava intacto. 

O corredor estendia-se à minha frente. 

Um silêncio prevalecia, perturbado apenas pelo barulho dos meus passos, conforme eu andava. 

Se não tivesse certeza de que acordara na casa de Nicolas, poderia dizer que aquele era um outro lugar, totalmente diferente.

Continuei caminhando, avançando pelo chão de pedras irregulares, torcendo os pés descalços. 

Eu ouvia o ruído metálico de algo que eu não via. Os pés moviam-se com grande dificuldade, pesados, hesitantes, incertos, como que amarrados por correntes invisíveis. 

Eu não via o que era, apenas sentia… 

“O que são essas sensações?” 

Com grande esforço, ergui os pés no alto, um por um. 

Era difícil, mais difícil do que de costume. 

Enfim atingi uma escadinha acima da qual eu pude perceber uma fresta de luz. Sem hesitar, me pus a galgar os degraus, buscando a saída. 

As correntes invisíveis exerciam sobre mim uma força sobrenatural. Eu avançava num ritmo vagaroso. 

Ao enfim chegar ao topo daquela escada, uma visão preencheu o meu olhar. 

A cidade inteira de Paris apagada. Os monumentos inclinados, a Torre inteiramente debruçada sobre o rio. Na superfície do Sena, refletiam-se o que eu percebi pela primeira vez serem mandalas grudadas no Véu. 

Tratava-se da casa de Nicolas, mas pela primeira vez, notei ser um castelo. 

Uma fortaleza medieval. Exatamente como o Palácio de Justiça parisiense.”

Edição de 2020

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